14 – OUTROS DOCES ANOS
Quase quatro anos se passaram. Algumas coisas mudaram no Circo Cristal, mas algo permanecia: as sandices de Francy E suas reuniões insistentes com os funcionários.
- Bom diiiiiia. – falava ela sentada em um lugar do circo com todos os funcionários a observá-la. Vamos primeiro fazer uma oração, depois falaremos sobre o que vamos executar no Circo Cristal, nesse ano que estamos começando.
Feita a oração. Alguns a observavam e sentiam um aperto imenso no coração. Espera um pouco, essa simpatia que está aí, é aquela mesma?
As reuniões entravam de tarde adentro, sem que tivessem um objetivo palpável para o bom andamento do circo. Fafá se pronunciava às vezes, quando percebia que a reunião cheirava um pouquinho a prática. Mas no teórico, Francy tomava as rédeas.
- Sinto que as mágicas não estão surtindo o efeito de outrora. – falava Flávio.
- Você tem que conquistar, é isso, conquistar. Eu tenho um exemplo do meu pai, olha só... – discorria Francy uma história que ninguém estava afim de saber.
- Acho que os leões estão ficando velhos, e... – falou Maurício.
- Acho que uma habilidade maior sua, faz com que esses leões... minha mãe é que é uma heroína, veja só... – e soltava outra história que em nada ia enriquecer o trabalho do circo.
E assim eram as reuniões. Enfadonhas, sem objetivos. Planejar o ano verdadeiramente, até que sim, mas era em vão. No momento da execução, tudo era mudado por Francy que dizia:
- E a gente planejou dessa forma? Não me lembro.
Julinha entrou no trailer com Rosa e travaram um diálogo. Julinha estava possessa.
- Ai, mãe, ainda bem que vou me livrar disso. Não é cuspindo no prato que comi, mas acho que quinze anos do lado dessa Francy já foram suficientes.
- Pois é, minha filha, você vai estudar, parar num canto e eu vou continuar com essa louca. Vá, filha, trilhe outros caminhos e sejas feliz. - falava Rosa com um ar triste.
- Não sou mal agradecida ao ponto de dizer que aqui aprendi uma profissão. Posso fazer muitas coisas na vida. Mas ficar me massacrando, morrendo a cada dia, não dá. Preciso voar, ser reconhecida, elogiada.
- Você parte quando? - perguntou Rosa tentando esboçar um sorriso.
- Minhas aulas no Colégio Base começam no início de fevereiro.
- Resolveu tudo na pensão da tal dona Clarisse? - perguntou Rosa.
- Tudo. É uma pessoa muito bondosa, simpática. Ela é uma aposentada da universidade, que colocou essa pensão, tinha uma casa grande e ociosa e decidiu alugar os quartos.
- É, acho que vai ser legal.
- Minha Julinha no primeiro ano do segundo grau! Nem acredito! - emocionou-se Rosa.
Em Santa Paz, Zé Bicicleta conversava com Tuca. Os dois lembravam de todas as etapas de vida de Zeza e emocionados travaram um diálogo.
- Vai ser um vazio tão grande aqui sem a Zeza, né querido? – falou Tuca.
- Quis ter outros filhos, você não aceitou. – falou Zé Bicicleta.
- Zé, foi melhor assim. Estamos criando a Zeza com alguns confortos, que se tivesse outros, talvez não existissem.
- Isso é verdade, vai fazer o segundo grau na capital! - orgulhou-se Zé Bicicleta.
- Mamãe está ansiosa pela chegada da neta. Sozinha há tantos anos! Coitada! - falou Tuca lembrando carinhosamente da mãe.
- Também a dona Ana Cecília é um vai e volta danado. - disse Zé Bicicleta.
- Sabe que eu acho que ela veio morar aqui naquele tempo, só pra gente se conhecer. Destino.
- Pois é, destino. - sorriu Zé Bicicleta.
Tuca e o marido se abraçaram demoradamente. Beijaram-se. Zeza entrou repentinamente, viu aquela cena e não disse nada, apenas riu e foi para o seu quarto.
Carla Albuquerque, Roberto Albuquerque e Aline estavam num luxuoso restaurante da cidade. Esperavam o prato que pediram enquanto conversavam.
- Estou ansiosa! – falava Aline olhando para os pais.
- Pelo início das aulas? – perguntou Roberto Albuquerque.
- É - respondeu a menina ainda lendo o cardápio.
- Segundo grau é mais pesado, mas não é bicho de sete cabeças, minha filha – falava a elegante Carla Albuquerque.
- Pois é, minha filha – falou Roberto dando um gole no uísque.
- Vou ter que escolher em breve minha profissão - disse Aline.
- Ora, não pense nisso agora. Não antecipe as coisas – falou Carla.
- Curta bem os estudos do seu colégio que é excelente e deixe as coisas fluírem - completou Roberto.
- Tanta gente saiu do Base.
- Muito caro, minha filha. Mas também é o que mais aprova no vestibular.
E alguns dias se passaram e o tão esperado primeiro de fevereiro chegara para Aline, Zeza e Julinha.
Primeiro dia de aula. Eterno friozinho na barriga para alunos, funcionários, professores.
Tradicional apresentação dos professores na quadra do colégio Base e cada aluno tomava seu rumo para primeira aula.
Aline Albuquerque, primeiro ano B... Júlia da Silva, primeiro ano B ... Maria José Sousa, primeiro ano B. O diretor chamava um a um.
As melhores amigas de Aline não tiveram condições de ficar no Colégio Base. Aline tinha que galgar novas amizades. O silêncio era característico de primeiro dia de aula. Reconhecimento do terreno. Professores saíam, professores entravam e o silêncio permanecia. Por pouco tempo, é claro.
Hora do intervalo. Três garotas solitárias em um imenso pátio: Maria José (Zeza), Aline e Júlia (Julinha).
As três se entreolharam. Aline comia um daqueles oleosos pastéis com um refrigerante. Zeza comprara uma pipoca e já estava se deliciando e Julinha degustava um pequeno quindim. Aline decidiu se aproximar de Zeza.
- Estamos na mesma sala. Qual o seu nome?
- Maria José. Zeza.
- Você e aquela menina que está comendo o quindim são novatas, né? - perguntou Aline apontando Julinha.
- Eu sou. Ela eu não conheço. - respondeu Zeza olhando em direção a Julinha.
- Vamos até lá conversar com ela, está sozinha.
Saíram Aline e Zeza ao encontro de Julinha. Pátio enorme a percorrer. Sorrisos de jovens. Hormônios a mil. Vida, alegria.
- Oi! – cumprimentou Zeza.
- Também és novata? – perguntou Aline.
- Sou sim. Estou toda por fora, né? - falou Julinha comendo o último pedaço do quindim.
- Liga não. Somos também – falou Zeza.
- Não. Eu não sou novata, estudo aqui desde pequena. Mas estou por fora como vocês, porque minhas amigas saíram todas do colégio.
- Qual o seu nome? – perguntou Zeza a Aline.
- Aline Albuquerque.
- E o seu? – perguntou a Julinha.
- Julinha. Júlia.
- O meu é Zeza. Pronto, estamos apresentadas e agora...
- Seremos suas novas amigas, Aline. Você não estará mais só - falou Julinha com um sorriso simpático na face.
- Que bom! Novas amigas. - disse Aline.
Julinha, filha de Beto e Tuca. Zeza, filha de Tuca e Zé Bicicleta, e, Aline, filha de Beto e Carla, estavam ali, as três, sem saber que algo tão forte unia aquela nova amizade. Sangue.
Alguns dias se passaram. A amizade estava consolidada. As três estavam sempre juntas, mas ainda estavam se conhecendo, não havia entrado no âmbito familiar.
Aline voltara aquela dia para casa de Mercedes conduzida pelo motorista. Zeza pegou um ônibus e foi pra a casa da avó Ana Cecília e Julinha voltava todos os dias a pé. A Pensão da dona Clarisse ficava bem perto.
- Oi, minha filha, já chegou? Estou quase terminando o almoço – falou dona Clarisse dando um beijo na testa de Julinha.
- É, dona Clarisse, não tivemos a última aula – falou Zeza se encaminhando para o seu quarto.
- Vai tomar banho primeiro? - perguntou a dona da pensão.
- Sabe. Vou não! Posso ficar conversando com a senhora um pouco?
- Claro, Julinha.
As duas foram para a cozinha. Dona Clarisse preparava uma deliciosa macarronada para os vinte estudantes que estavam hospedados por ali e Julinha sentou-se em um tamborete.
- Estou adorando tudo! O colégio, os professores, a sua pensão. Mas estranho o comportamento de alguns colegas.
- Como assim, Julinha? – perguntou dona Clarisse.
- Muito ricos. Têm coisas que nunca sonhei ter, mas reclamam da vida - falou Julinha com uma expressão contrariada.
- Mas num é assim. Quanto mais se tem...
- Eu sei o quanto tá sendo difícil para a mamãe me sustentar aqui com esse colégio, na sua pensão... tenho que agarrar essa oportunidade.
- Você é uma gracinha! Me faz lembrar alguém que não vejo há séculos - falou dona Clarisse mexendo uma panela no fogão.
- Sei não. Quero ser alguém, prestar um vestibular. Não quero ficar fazendo palhaçadas a vida toda com o Pimpo, nem vender doces na hora do intervalo do circo - afirmou Julinha.
- Muito bem, Julinha! Gosto de ouvir você falar assim!
- Quando eu trabalhava na universidade, via pessoas com diplomas fazendo outras atividades. Acomodadas. Era mais fácil ser dona de cantina, fazer caldo de cana e engraxar sapatos do que lutar para ter algo em sua profissão. Ufa!
- Ufa! Por quê, dona Clarisse?
- Porque estava engasgada anos e anos querendo dizer isso - falou dona Clarisse lembrando do diálogo que tivera com Tuca anos atrás.
- Dona Clarisse, a senhora é o máximo! - sorriu Julinha.
- E quanto a essa história de seus colegas de outro nível. Um conselho eu te dou. Continua só sendo amiga deles, não queira nenhum pra namorado.
- Por quê?
- Por que amor de pessoas de níveis diferentes é tão complicado! - filosofou dona Clarisse.
- A senhora já se apaixonou por alguém de um nível maior que o seu, por um ricão? - perguntou Julinha.
- Não! Mas tenho uma história sobre isso.
-Conta, conta - insistiu Julinha.
- Existia uma garotinha muito falante, assim como você. Vendia doces pela universidade. Nunca mais a vi, nem soube notícias. Era bonita e acabou se apaixonando por um rapaz dentro de um ônibus, enquanto conversavam. Ele tinha uma condição de vida muito melhor que a dela e o amor não vingou.
- Então não era de verdade - afirmou Julinha.
- Era sim, filha. Eu sentia que era a coisa mais linda e mágica desse mundo. Ela acabou engravidando dele, e, no dia que ia dar a notícia, ele disse que havia engravidado a colega de classe e que iria se casar com a tal. A pobre da vendedora de doces, recuou, não disse de sua gravidez. Teve a filha escondida de todos. E foi isso aí. Nunca mais tive notícias dessa minha grande amiga. Confesso que também não fui atrás. Me aposentei da universidade, perdi outros contatos e decidi construir algo novo: minha pensão. Começar novas amizades...
- Nossa! Que história triste! - falou Julinha levantando-se do tamborete - Pela barulheira, a galera chegou.
O restante dos pensionistas chegaram. Todos sentaram à mesa e almoçaram. Era aquela festa as horas das refeições da pensão, uma algazarra só. Fome, sorrisos, fofocas, novidades do dia, enchiam de harmonia todo os espaços. Dona Clarisse, que sempre viveu juntos aos universitários sabia muito bem conviver com aquela algazarra.
No extremo da cidade, Zeza chegava na casa da sua avó Ana Cecília. Dava uma andada boa do colégio até lá. Era o momento de reflexão de todo os dias. Zeza, naquela caminhada diária, gostava de cumprimentar as pessoas (costume do interior), parar e contemplar o dia, comprar algo para mastigar antes do almoço...
- Vozinha, cheguei - falou Zeza ainda na calçada.
- O almoço está pronto, Zeza. - falou dona Ana Cecília com seus respeitáveis cabelos brancos. - Foi tudo bom pelo colégio hoje?
- Tudo maravilhoso! - Estou muito amiga de duas garotas. - falou Zeza sentando-se à mesa.
- Sim, aquelas meninas que você disse - falou a avó pegando uma concha de feijão e colocando em seu prato.
- É. Aline e Julinha! Somos como verdadeiras irmãs. - sorriu Zeza.
- Você se parece tanto com sua mãe, afobada. “Tudo é lindo, todos são irmãos, é o maior amor da minha vida, amo vender doces”. Sempre tudo ótimo, tudo maravilhoso!
- E a vida não é pra ser assim, vó? - questionou Zeza.
- Claro! Mas não precisa de afobações. Há uns anos sua mãe sofreu muito por causas dessas afobações. Cuidado para também não se machucar - falou dona Ana Cecília dando um gole no suco.
- Ê, vó, deixa disso. Eu sou feliz, não sou afobada, dona Ana Cecília - disse Zeza contestando a avó.
- Falando na sua mãe, ela ligou hoje. Disse que seu pai não agüenta mais de tanta saudade. E a Nalda só fala em você o tempo todo.
- Foi!? - alegrou-se Zeza.
- Já disse pra teu pai e tua mãe virem morar na capital, mas são dois teimosos - falou a velha que ficara mais carrancuda esses últimos anos.
- É que a oficina de papai tá dando muito lucro por lá, vó. E os doces da mamãe, nem se fala. É trocar o certo pelo duvidoso - ponderou Zeza.
- Bom apetite, Zeza - falou dona Ana finalizando aquela conversa.
A Mercedes estacionou na garagem da mansão dos Albuquerque. Aline desceu e foi em direção à sala de jantar. Imenso jardim, cômodos infinitos, luxo, limpeza, riqueza...
- Nossa! Nem me avisaram dessa festa! - falou Aline vendo toda sua família reunida.
Estavam sentados à mesa: doutor Paulo Albuquerque, dona Lídia Albuquerque, juíza Marta Feitosa, Luna Albuquerque, Roberto e Carla.
- Minha, filha, é realmente uma festa! - falou Carla levantando-se e indo em direção a filha.
- O que aconteceu? - perguntou Aline.
- Seu pai passou em todas as etapas do concurso de juiz. Estamos comemorando! - falou dona Lídia emocionada com a vitória do filho.
- Meu Deus! Quanta alegria! Depois de séculos abriu esse concurso de juiz daqui desse Estado. E você, meu filho, passou de cara. - orgulhou-se doutor Paulo Albuquerque.
- Pois é, coloquei na cabeça que não queria sair do Estado para fazer concurso em outro lugar e venci. - sorriu Roberto aliviado.
- Foi chamado para que cidade? – perguntou Aline.
- Ainda vão dizer, filha – respondeu Roberto.
- Deve ser um interiorzão desses aí, Aline – falou Carla.
- Vai a família toda morar no interiorzão? – perguntou juíza Marta.
- Deus me livre, mamãe! – falou Carla.
- Acho que dá para administrar isso. O Roberto vai e volta. Constrói uma casa por lá, para quando tiver que demorar um pouco – falou doutor Paulo Albuquerque.
- É. Você acaba sendo transferido. Você vai ver – falou dona Lídia.
- Meu irmão, saiba que sempre torci por você. Você tá colhendo o que plantou - disse Luna.
O almoço foi festivo. Roberto estava alegre, mas pensativo ao mesmo tempo. O que será que ele pensava tanto? Tuca?
Sem comentários:
Enviar um comentário