terça-feira, 3 de agosto de 2010

Primeiro capítulo do livro DOCE FRUTO


1 –DOCE DIÁLOGO



Manhã chuvosa de março, barulho ensurdecedor dos carros e ônibus a cruzarem aquela avenida principal. Capital. Conhecida capital, movimento frenético, rotina, asfalto, espigões...


Pessoas tão cedo cruzando por ali, baratinadas, buscando muitas vezes um objetivo tão insignificante. Buzinas nervosas, guardas em atividade, distância, relógio de ponto...


E o calor começa com o primeiro raio de sol que chega por ali. As faces daqueles seres (sobreviventes) estão inchadas. O cansaço do dia anterior ainda impera, invadindo cada organismo daquele.


Trabalhar, estudar, viver... correr contra o tempo, o tempo todo. Senti-lo passando e perceber tristemente que nós não podemos freá-lo.


Beto, estudante do curso de Direito da universidade federal, envolvido em toda a parafernália que forma essa capital.


Tudo era muito novo para esse jovem de dezenove anos que ingressara há duas semanas numa vida tão diferente da que levara.


Saíra de um período de treze anos em um conceituado colégio particular da cidade e de repente se viu dono de seus próprios passos, numa universidade federal...


Entrou ainda atordoado dentro do ônibus. Será que esse passa pela universidade? Teve que se arriscar, pois misturado ao calor insuportável, começava a cair uns pingos de chuva. A hora já estava bem avançada e o ponto do ônibus não havia espaço para abrigar mais ninguém.


Pelo menos, para amenizar as agonias, encontrou uma vaga junto a uma garota, perto do cobrador.


Tentou se enxugar com as mãos, sacolejou os cabelos e tirou os pingos de chuva que caíra no caderno. Mas a dúvida permanecia. Aquele ônibus passa pela universidade?


Beto era um jovem tranqüilo, mas já estava sendo influenciado pelo estresse instalado em qualquer cidade grande. Perdera a mordomia de ir no banco do carona do carro de seu pai para alguns lugares, pois o combustível estava aumentando deveras e para uma família de classe média não estava cabendo no orçamento sair de um extremo a outro da cidade, só para deixá-lo na universidade ou na casa de algum amigo.


Ônibus. Essa era a nova realidade de Beto. Pegar ônibus como inúmeros universitários. Mas ele tinha em mente que tudo mudaria, era hora de pensar em algo mais concreto, ser um bom advogado ou juiz, quem sabe. Chega de pensar no lindo cabelinho preto escorrido ensopado de gel, na malhação de horas na academia, no tempo perdido em frente ao espelho. Era preciso encarar a vida real, era hora de se enterrar definitivamente nos livros, e...






- Desculpe, estou um pouco atordoado e acho que entrei num ônibus errado. Este passa pela...


- Universidade? – falou prontamente a garota ao seu lado antes que Beto terminasse de se pronunciar.


- É. Como você adivinhou? – perguntou curioso o rapaz.


- Eu vejo você por lá essa hora, eu também estou indo para a universidade.


- Você mora pela região?


- Não, eu vendo meus doces lá por dentro, você nunca me viu?


- Doces? Eu só entrei há duas semanas lá e pra lhe falar a verdade, estou um pouco desligado de tudo, ainda estou me situando no tempo e no espaço. Não sei se os mimos dos meus pais foram bons. Agora precisei virar adulto e foi tudo muito repentinamente.


- É gozado, já vi casos parecidos lá na universidade - falou a menina sorrindo e ajeitando a caixa de plástico no seu colo.


- Como assim? – perguntou Beto admirado com a desenvoltura de uma simples vendedora de doces.


- Passou a vida toda em um colégio particular?


- É.


- Tudo bonitinho, organizado, 50 minutos sai um professor e entra outro, hora do intervalo para o lanche, festa de dia das mães, dia dos pais...


- Jogos internos, gincana – completou Beto.


- Vai e volta de transporte escolar, e...


- Que nada, carro de papai e mamãe, com eles dois nos bancos da frente.


- Nossa Senhora! Piorou a situação! – falou a simpática garota se benzendo.


- Por quê?


- Ora! Agora é ônibus lotado, um misto de calor e chuvisco, a deliciosa desorganização da universidade. Você correndo pra lá e pra cá, para assistir aula em salas diferentes, não tem mais toque, nem hora do intervalo, nem...


- Jogos internos e gincana – falou Beto interrompendo a garota mais uma vez.


- Sabe o que eu digo para pessoas que estão nessa sua situação?


- O quê?


- Bem-vindo à vida real! Ela está começando agora!


- Nossa! Que raio-x rápido e eficiente você fez de mim!


- Já vamos descer no próximo ponto – falou a garota pegando sua caixa de plástico e uma sacola imensa.


- Nem percebi. Chegou tão rápido! – falou Beto passando a mão no cabelo e se encaminhando para a porta de saída do ônibus.


- Tchau, foi bom te conhecer. Qual o seu nome?


- Beto. E o seu?


- Já que vale o apelido, o meu é Tuca.






Beto definitivamente andava pelo vácuo do fluxo de pessoas. O número da sua sala ainda precisava ser visto na frente do seu caderno. Andar, andar, andar... Língua Portuguesa, professora gordinha e ruiva. Corredor sem fim, sala 511, sete e quinze da manhã. Bom dia, turma!


Tuca era dona de seus próprios passos. O pátio imenso era conhecido por ela de ponta a ponta. Andar, andar, vender doces... comunicação correndo pela veia. Professora: a vida pobre e cruel. Corredor sem fim e cheio de fregueses, olhadinha na sala 511, 512, 513... Mesma hora de sempre.






- Bom dia, Clarisse!


- Bom dia, Tuca. Tem docinho de quê?


- Hoje eu trouxe brigadeiro, bem-casado e uvinha.


- Tudo feitinho hoje?


- Claro, amiga, no frescor da madrugada.


- Você viu os feras como estão compenetrados? – falou a funcionária da coordenação do curso de Direito, olhando a turma pelo lado de fora da janela.


- Pois não é, Clarisse, eles chegam tão bem intencionados, mas depois o negócio desanda.


- E você, Tuca, desistiu de fazer vestibular? - perguntou


Clarisse degustando o terceiro docinho.


- Desisti. Me formar para vender doces, é?


- Eu hein! Claro que não, Tuca, para ter uma profissão e...


- O que é que dona Gorete fez com o diploma dela de assistente social, Clarisse?


- Jogou no sopão que ela faz todo dia.


- E dona Cida, o que fez com o dela de Letras?


- Está dentro da graxa de sapatos dos fregueses.


- E dona Paola, nossa grande arquiteta?


- Arquiteta muito bem o cachorro quente e o caldo de cana dela.


- Estamos conversadas ou não, Clarisse?


- Nossa, Tuca, acho que te desestimulei mais, dizendo essas coisas. Mas nem todos estragam seus diplomas.


- É, Clarisse, mas o meu por exemplo, serviria apenas como bandeja para os meus doces.


- Ave, mulher, deixa eu ir que hoje eu já comi oito. Anota no caderninho, que no final da semana eu pago.


- Tudo bem, senhora bióloga, funcionária da coordenação de Direito.


- Você hoje! Tá bem, já me convenceu que não precisa prestar vestibular...






Clarisse e Tuca travavam diálogos dos mais diversos naquele corredor. A manhã de vendas estava satisfatória para Tuca. Clarisse era sua freguesa fiel e de peso. Com seus noventa e três quilos, ainda guardava lugar para mais doces em sua barriga. Era funcionária da coordenação de Direito há quatorze anos, desde que se formara no curso de ciências biológicas.


Tuca saíra desfilando com seus doces apetitosos por todos os lugares. Dona de uma simpatia singular, de um cabelo castanho e liso e de uma pele bronzeada do sol e olhos cor de mel, ela sabia como ninguém conquistar seus fregueses a ponto de nunca voltar para casa com um só doce na sua caixinha.


Mas aquele dia algo lhe parecia diferente. Ao olhar a sala 511, dos feras de Direito, Tuca percebeu que aquele menino do ônibus se inquietava ao ponto de levantar-se em pleno decorrer da aula e ir até à porta.






- Tuca.


- Oi, está querendo algum doce?


- Pois é. Estava morto de vergonha de sair de sala, mas não pude resistir. Tem uma colega minha, que quando viu você pela vidraça da janela, começou a falar do sabor de seus doces e foi me dando uma vontade louca de experimentá-los.


- Deixa eu ver quem é sua colega – falou Tuca abrindo a caixa e olhando para a sala 511.


- É aquela de blusa branca – disse Beto pegando um bem-casado e apontando para a colega. O nome dela é Carla.


- Ah! Já sei, ela comprou umas duas vezes comigo. Compra um para ela. Você vai ter coragem de entrar na sala de novo?


- Claro, a aula está fervendo! Tchau, Tuca.


- Tchau de novo, né, Beto.


























































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