domingo, 15 de agosto de 2010

Quarto capítulo do livro "Doce Fruto"

4 – DOCE AMANHÃ











Sete horas da manhã. Beto ainda dormia. Sexta feira chuvosa. Tudo tão diferente do dia anterior. Perdera já a primeira aula. Abrir os olhos, que dificuldade! Luna entrou no quarto do irmão e começou a falar.
- Beto, já são sete da manhã! Não vai para a universidade? Não é uma pergunta só minha, todos lá embaixo perguntam a mesma coisa. Aliás, a pergunta é também sobre...


- Luna, por favor, deixa primeiro eu me acordar, me situar no tempo e no espaço. Cheguei ontem às dez da noite.


- Ô, mano, desculpa. É que você, às vezes, precisa de tratamentos de choque, para se situar no tempo e no espaço.


- Somos?


- Somos o quê? - olhou Luna admirada para o irmão.


- Namorados?


- Não, somos irmãos.


- Luna, me escuta! Sabe aquela garota que te falei?


- A Carla?


- Eu já te falei da Carla?


- Bebeu foi, Beto?


- Bebi, estou embriagado de paixão.


- Pela Carla, Beto?


- Não! - respondeu Beto pensativo.


- E por quem?


- Não te falei da vendedora de doces?


- Tuca. Falou sim. Mas espera um pouco. Estou confusa! A última notícia que tive sua ontem, foi que você estava no velório do pai da Carla. E você agora me chega dizendo que voltou para casa às dez da noite, e...


- Estava com a Tuca. Fui de fato para o velório do desembargador. Fui com a Tuca e de lá decidi fazer uma programação com ela.


- Com a doceira!?


- Nossa, Luna, nunca achei que fosses desdenhar de mim.


- De jeito nenhum, mano, só que aqui em casa as expectativas eram outras. Mamãe e papai quando souberam que você estava a caminho do velório do desembargador Feitosa, mandaram de imediato uma coroa de flores em nome da família e como você estava demorando a chegar, acharam que você tinha emendado com o enterro e depois com um jantar com a Carla.


- Já querem me casar com a menina?


- Beto, é uma garota de futuro. Sua colega. Do mesmo nível. Acho que a doceira aqui, não vai ter muita vez não.


- É uma pessoa encantadora! Linda! Maravilhosa!


- Mas é uma vendedora de doces.


- Isso também está saindo do seu coração?


- Beto. Você não vai mesmo pra universidade?


- Isso que você acabou de dizer, Luna, é uma frase sua?


- Não, Beto, mas é que fomos criados...


- Somos, robotizados. Temos que ser assim, temos que conduzir dessa forma, para ser feliz a receita é essa...


No mesmo momento, entra no quarto dona Lídia Albuquerque surpreendendo os dois filhos.




- Não tive como não escutar a conversa. Não é do meu feitio, vocês sabem disso, mas, tenha santa paciência! Roberto, levante-se dessa cama, tome um banho que vou te levar para a universidade. Você ainda pega a segunda aula.


- Mãe!


- Esse é o resultado de você se envolver com quem não é do nosso nível.


- Qual é o nosso nível? Papai vive apertado de dinheiro, sua loja no shopping só dá prejuízo, eu ando de ônibus, temos empréstimos aos montes, estamos com contas atrasadas...


- É uma pequena crise, estamos atravessando - falou a pomposa dona Lídia.


- Mãe, vivemos de aparências - afirmou Beto levantando-se da cama.


- Não. Seu pai é um conceituado advogado e a loja vai se recuperar.


- Mãe, vocês construíram esse império, mas não estão conseguindo manter. Olha, vendam essa casa imensa, vendam os carros importados e comprem um popular. Temos que organizar essas contas, eu e a Luna vamos compreender tudo isso. Olha, baixa os preços na boutique. Faz uma bela liquidação...


- Beto!


- É, mãe, olha... – falou Luna.


- Luna, estamos vivendo uma fase, vamos sair disso. Agora, escuta só, Beto, escuta bem sua mãe. Eu e seu pai investimos muito em vocês, nisso tudo que temos. Não nos decepcione. Precisamos ver você juiz e bem casado, um homem de sucesso, um homem brilhante. Foi para isso que te criamos. E você, Luna, vai também escolher uma boa profissão quando chegar a hora e vai fazer um bom casamento. É o mínimo, o mínimo que exigimos de ambos...


- Gravou, Luna – falou Beto ironizando a mãe.


- Isso aí. Não é só para a Luna gravar. Escutei você dizer que saiu ontem com uma vendedora de doces. Tenha dó, se gosta um pouco de mim, vê se esquece essa idéia. Não vou aturar que nada atrapalhe meus sonhos em relação a você.


- Seus sonhos?


- Filho, um dia você vai ser pai e vai compreender que nós temos sonhos em relação aos filhos.


- Mãe, eu sei, mas digamos que se eu namorasse a Tuca, eu não ia deixar de realizar os seus sonhos, que acabaram sendo meus também.


- Nos meus sonhos não estão incluídos um casamento matuto.


- Ela não é matuta.


- É uma vendedora de doces. “O juiz Roberto de Albuquerque e sua esposa Tuca, uma vendedora de doces, estão na festa”... sairia numa coluna social.


- E se a senhora a chamasse para trabalhar na sua boutique? Ela vende como ninguém.


- Quer acabar de afundar a boutique? Já basta aquela lerda da Bibi por lá. Olha, Beto, já falasse muita asneira por hoje. Toma logo esse banho que estou saindo daqui a dez minutos.


- Tá certo, majestade!
Tuca já estava vendendo seus doces pelos corredores da universidade e sempre avistando a sala 511. Beto estava atrasado! Nossa! Nunca aconteceu isso!
- Estou preocupada, Clarisse.


- Ora, que bobagem, deve ainda estar sonhando com o dia que teve ontem.


- Ai, mulher, eu não me canso de pensar. Eu nunca vi espetáculo de circo tão lindo.


- Mesmo que não fosse lindo, mas ao lado da pessoa amada, tudo é encantador.


- Circo Cristal! Lindo, precioso, brilhante, transparente como a paixão.


- E somos? - perguntou Clarisse sorrindo.


- Acho que somos sim. Somos namorados!


- E dona Ana Cecília. Você contou a ela?


- Saímos do circo nove e pouco da noite. Cheguei em casa muito mais de dez. Mamãe me cobriu de perguntas. Falei tudinho pra ela.


- E ela disse o quê? - perguntou a curiosa Clarisse.


- Que tivesse cuidado para não me machucar. O que diz toda mãe. Me machucar!? Esperei dezoito anos por alguém. Tive paquerinhas bestas, mas o Beto é muito especial...


- Posso te dizer uma coisa?


- Pode.


- Cuidado para não se machucar.


- Você é mais mãe do que amiga - olhou séria para o rosto de Clarisse.


- Já tenho idade para isso.


- Mas onde está ele que não chega?


Tuca olha para a sala 511 e avista Beto acabando de entrar para segunda aula. Coração palpitando! De longe se avistaram, sorriram. Aquele era o doce amanhã.


Tuca continuou na sua atividade e sempre de olho na sala 511. Logo mais, seria o intervalo da segunda para a terceira aula. Somos?


Não acreditou ao avistar o final do corredor. Carla. Toda de preto, olhos inchados, cabelo loiro feito um coque. Não podia ser. O pai faleceu ontem?


- Carla, meus sentimentos! Não quis entrar ontem, mas saiba...


- Tudo bem, Tuca. Sabe Deus como estou aqui. Mas tive que vir, não podia deixar para a reposição. No período de repor provas estarei em Nova Iorque, fazendo compras com mamãe.


- Ontem você foi com o Beto?


- É, fomos para o velório de carona com a Clarisse.


- Vou já dar um beijo na Clarisse. Sabe porque o Beto não foi para o enterro? - perguntou Carla.


- Não - empalideceu Tuca sem ter motivos.


Quando Carla saiu, Tuca teve uma sensação estranha. Por que ela não podia dizer aos quatro cantos, principalmente para aquela Carla, que ele era agora o seu namorado. O que impedia?


Dentro da sala 511, Beto não estava atento a nada. Carla entrou, sentou-se ao seu lado e ele continuava apático. Que conversa desagradável tivera com dona Lídia. E durante o caminho para a universidade, mais ladainha!
- Beto! – chamou Carla baixinho para não atrapalhar a aula.


- Oi, Carla. Carla, eu não pude. Olha, depois a gente conversa. Vou anotar isso que o professor tá falando.


Beto queria um pouco mais de tempo para uma desculpa mais bem elaborada. Para que desculpa? Por que não dizer a verdade?


Na casa de Tuca, dona Ana Cecília conversava ao telefone com dona Nalda, sua irmã.


- Tenho medo, Nalda. Conheço quando alguém se apaixona.


- E você achava que Tuca nunca ia se apaixonar?


- Não estou gostando, Nalda, ela saiu aérea hoje para vender os doces.


- Claro. Tu nunca se apaixonou, Ana Cecília?


- Já, pelo Lúcio, pai dela. Deu no que deu.


- Mas, mulher, o homem morreu.


- Pois é, me deixou aqui apaixonada.


- Deixa a menina. Já tem dezoito anos.


- Tenho medo de ser um safado, fazer ela sofrer, imagina ela pegar uma barriga?


- Sei não, Ana Cecília, você depois que saiu de Santa Paz para a capital, ficou muito estressada.


- Tá bom. Vou desligar. Olha, se o negócio apertar por aqui, mando ela pra passar uma temporada contigo.


- Pode mandar, adoro minha sobrinha.


Chegou o tão sonhado intervalo da segunda para a terceira aula. Beto, já menos apático, levanta-se da cadeira com o coração palpitando. Conversar com Tuca e com Carla. Em apenas cinco minutos, resolver dois problemas. Estava mesmo virando adulto. Problemas! Decidiu começar por Carla. Seria mais simples inventar uma desculpa qualquer por não ter ido ao enterro. O quê?


- ... pois então foi isso. Papai ficou furioso, mas era um engarrafamento enorme, não íamos chegar a tempo no enterro. Pegamos outra rua e voltamos para casa.


- Que simpáticos, seus pais iam para lá?


- É, Carla, papai teve um certo contato com seu pai naquele congresso internacional de Direito, que teve aqui há dois anos. Ficaram de uma certa forma amigos.


- Querido, vou ter que ir para a biblioteca agora, tenho que dar uma revisada na prova do quinto horário.


- Decidi repor. Praticamente não estudei - falou Beto.


- Beto, vem revisar comigo na biblioteca, acho melhor você fazer. Dizem que a reposição desse professor é complicada demais. Eu não posso deixar de fazer. No período da reposição estarei longe.


- A viagem continua de pé?


- Está tudo pago. Perdemos a de papai, a agência não vai ressarcir... eles têm razão, mesmo sendo caso de morte, eles se comprometem com hotel, ônibus, companhia aérea.


- Você tem certeza?


- Tá escrito no contrato. Deixa pra lá. Como é, faz ou não faz a prova hoje?


- É. Perco essa terceira aula. Daqui a dez minutos tô lá na biblioteca. Só vou aqui resolver um probleminha.
Beto foi em direção a Tuca que estava vendendo doces no pátio. Esperou um grupinho sair de junto dela e aproximou-se.


- Somos?


- Claro que somos. Se depender de mim, seremos sempre.


- Estou numa felicidade tão grande, que tenho forças para enfrentar batalhões. Nada me sai da mente. A praça, o circo, o sorvete, a pipoca, os beijos, o dia inteiro. - falou Beto com uma expressão de alegria.


- E eu só pensava no dia de hoje.


- Nesse doce amanhã?


- Nesse doce amanhã.

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