quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Segundo capítulo do livro DOCE FRUTO



2 – DOCE ROTINA

Quatro horas da manhã, nem um minutinho a mais. Essa era a hora que Tuca acordava de segunda a sábado. As panelas batiam, o cheiro delicioso de doce incensava toda a casa.


Tuca tinha dezoito anos de idade e desde os treze, já sabia manusear panelas como ninguém. Filha de dona Ana Cecília, teve que trazer dinheiro para casa logo cedo, pois o salário de auxiliar de enfermagem de um posto de saúde que sua mãe trabalhava, não dava para as duas viverem.


Tuca aprendera a fazer doces com a irmã de sua mãe, sua madrinha, dona Nalda, que morava no interior. Dona Nalda era muito jeitosa, tinha uma habilidade manual muito grande e sempre ganhou dinheiro vendendo tudo que produzia.


Dona Ana Cecília, mãe de Tuca, viera tentar a vida na capital com vinte e cinco anos de idade, já trazia na bagagem o curso de auxiliar de enfermagem, feito em Santa Paz, cidade natal dela e de toda família.


Chegando na capital, lutou muito por um emprego e conseguiu numa clínica particular, próxima a sua casa de apenas quatro cômodos, que conseguira comprar após anos de aluguel.


No ano seguinte à sua chegada, dona Ana Cecília conheceu um jovem rapaz com quem foi casada por dois anos e que falecera logo depois da notícia de sua gravidez.






- Desculpa, mãe, te acordei com minha barulhada, não foi?


- Que nada, filha, me acordei por causa de um bendito pesadelo. Mas foi até bom, porque hoje meu plantão começa às seis e meia. São que horas? – perguntou dona Ana Cecília colocando alguns frisos no cabelo.


- Já são quinze para as seis, mãe – respondeu Tuca terminando de encaixotar o último brigadeiro.


- Essa arte que sua tia lhe ensinou é que está nos salvando no final do mês. Você com esses seus doces está tirando mais dinheiro do que esse meu diplominha de auxiliar de enfermagem.


- E a senhora, tempos desses, queria que eu largasse tudo para estudar para o vestibular, e...


- É que eu tenho pena de te ver todo dia nessa luta, fazendo esses doces, batendo perna o dia inteiro naquela universidade – falou dona Ana Cecília interrompendo a filha.


- Mãe, não se preocupe comigo, eu tenho prazer em fazer e vender estes doces. Já fiz muitas amizades pela universidade e sou muito jovem, tenho força para trabalhar.


- Sabia que você lembra muito seu pai. O pesadelo que tive foi com ele. Eu não me conformo de ele não ter te conhecido. Mais uma vez sonhei com o atropelamento dele. Que morte estúpida! Quando fui lá para fazer o reconhecimento do corpo dele, ninguém permitiu que eu entrasse na sala, estava todo estraçalhado. Que horror! Os pesadelos que tenho são exatamente eu supondo como ele estava.


- Credo, mãe!


- Aqueles amigos dele, colocaram o pobre num caixote, pois nem dinheiro pro caixão eu tinha e enterraram ali na beira da estrada, aonde você já foi algumas vezes. Imagina só, eu com vinte poucos anos, sozinha, com você para criar. Quando penso me dá um frio na espinha!


- Bola pra frente, dona Ana Cecília, isso já tem dezoito anos, a vida continua. Eu estou aqui, a tia Nalda em Santa Paz. Somos uma linda família – falou Tuca já com duas caixas repletas de doces indo em direção à porta.


- Já vai, filha?


- Beijinho, mãe, já estou atrasada.






Já eram seis e quinze da manhã e Beto estava tomando café da manhã com os seus pais. Doutor Paulo Albuquerque era um renomado advogado e dona Lídia tinha uma fantástica boutique no shopping mais conhecido da cidade. Beto era um belíssimo rapaz e convivia muito bem com todos da sua família. Luna, sua irmã de doze anos de idade, tinha o irmão como ídolo.


- Filho, como estão as aulas? – perguntou doutor Paulo.


- Naquele comecinho chato que o senhor me falou. Depois acho que melhora.


- Com certeza, Beto, depois você entra no ritmo. Será que já não era hora de investir em uma salinha para um futuro escritório. Sim porque é claro que você vai ficar um bom tempo conosco lá no nosso escritório, mas sabe como é, filho, são quatro sócios... queria uma coisa só sua, porque esse negócio de sociedade não é bom pra ninguém.


- Pai, se o senhor puder investir nisso, já seria maravilhoso. Agora tenho que ir, abraço, pai, mãe e Luna.






Beto saiu pensativo, aquele era mesmo seu destino. A área de Direito que já começava a lhe encantar seria o seu riscado para o resto da vida. Crescer, amadurecer naquilo ali.


O mesmo ônibus, o mesmo motorista, o mesmo cobrador. Esse com certeza passa na universidade. Lá na frente, já bem acomodada com sua caixa de plástico, Tuca.






- Não pode ser! Muita coincidência. O mesmo ônibus! – falou Beto sentando-se ao lado da jovem doceira.


- Daqui para você terminar o curso, muitas coincidências dessa vão acontecer. Digo isso, porque saímos no mesmo horário e vamos sempre para o mesmo lugar.


- Eu diria então, que foi coincidência encontrar esse lugar vago ao seu lado.


- Também não. Esse lugar que está vago, eu guardei o tempo todo para você.


- E como foi, ninguém reclamou? Afinal o ônibus está bem cheio.


- Disse que era para um jovem que ia subir em breve e sofria de uma certa doença que não podia ficar em pé.


- E todo mundo aceitou isso?


- Todos. Bem, agora você chegou...


- Você é uma gracinha!


- Vai comprar doces hoje?


- Sabe, Tuca, acordei com uma vontade de presentear a Carla com cinco doces diferentes.


- Para a Carla!?






Complicado aquilo tudo. Tuca não tinha certeza de seus sentimentos. Na verdade, nem achava que fosse uma mortal e também sentisse algo estranho por outra pessoa. Mas naquele momento, alguma coisa a incomodou. Comprar doces para Carla? Por quê?






- Por quê? – perguntou Tuca.


- O quê? - respondeu Beto distraído com a paisagem fora do ônibus.


- Comprar doces para a Carla?


- Ora, porque ela gosta dos seus doces e é uma excelente colega - falou Beto sem pestanejar.


- E tem algo a mais?


- Você alcança de longe. Sabe, Tuca, acho que chegou a hora de eu me centrar mais nas coisas. Sou universitário, vou em breve estagiar no escritório do meu pai, quero encontrar alguém para um relacionamento sério. Acordei com isso em mente. Papai até me falou que ia procurar uma sala para o meu futuro escritório.


- Por quê?


- Por que o quê, criatura?


- Eu digo porque tem que ser a Carla? Você disse que ia procurar alguém para um relacionamento. Você já encontrou, né?


- Na verdade, tenho certa preguiça de procurar. Encontrar é muito melhor que procurar, não acha?


- Certamente.


- Quando nos encontramos de outras vezes, você estava mais falante, parece que dessa vez quem tomou água de chocalho foi eu.


- É porque você está feliz!


- E você não?


- Eu, Beto, estou com a sensação que fiquei apaixonada por alguns dias e perdi essa paixão por apenas cinco doces. Foi tão barato.


- Acho que chegamos.






Beto começou a entender que aquele algo a mais, que também sentira de imediato pela doceira mexia com Tuca. Mas uma doceira? Como aquilo tudo seria aceito por dona Lídia Albuquerque e doutor Paulo?


Sempre foi assim. Dar satisfações de todos os passos. Quem são esses seus amigos? Filhos de quem? Que horas vai e que horas volta? Que curso vai fazer e qual a especialização? E agora, você pretende namorar uma doceira?


Seria algo que desequilibraria todo um processo já formado. Toda uma organização já estabelecida. Carla, mamãe, é filha do desembargador Feitosa e da juíza Marta Feitosa. Que alegria! Que felicidade! Esse nosso filho só nos traz orgulho!






- Não liga para o que eu disse, Beto. É que meu coração é assim mesmo, fala pela boca, eu tento controlar, mas...


- Tuca, eu...


- Não quer os cinco doces logo? – perguntou Tuca abrindo a caixa no ponto do ônibus


- Estou confuso! Acordei hoje com o pressentimento que algo muito estranho e definitivo fosse ocorrer na minha vida, e...


- Não quer logo os cinco doces?


- Por favor, estou cada vez mais confuso!






Beto deu uns passos à frente, não conseguiu falar mais nada. Chegou na sala 511 e sentiu que o clima estava pesado.


- Clarisse, o que está acontecendo por aqui?


- Meu filho, estava esperando só você, porque sei que és muito apegado a Carla.


- O que aconteceu, Clarisse?


- O desembargador Feitosa faleceu. O corpo está lá no Tribunal de Justiça. Seria bom que você passasse por lá. Ela mesma ligou para cá abaladíssima. Ataque cardíaco!






Beto ficou em estado de choque, derramou algumas lágrimas, respirou fundo e foi em direção a Tuca.






- Já está sabendo, Tuca?


- Do pai da Carla? Estou sim. Acho que agora mais do que nunca você tem que levar os cinco doces para ela.


- Tuca, me ajuda, estou nervoso! O que faço agora? Será que papai vai ao velório? Será que eu devo ir sozinho? Será que eu devo ir?


- Nunca foste a um velório?


- Você já?


- Fui numa dúzia. Meu Deus, em que planeta você foi criado?


- Vamos comigo, Tuca?


- Eu!? Não quer levar minha caixa de doces e me deixar quieta aqui.


- Por favor! Eu nem sei o que dizer a ela.


- Meus pêsames ou meus sentimentos.


- Por favor!


- Mas eu não tenho uma roupa adequada.


- A Clarisse tem um montão de roupas na sala da coordenação, coloca uma delas e vamos comigo.


- E os cinco doces?


- Pára com isso! Não é hora para brincadeiras!






Tuca foi falar com Clarisse, pegou uma de suas roupas, deixou a caixa com doces na estante da sala da coordenação e foi em direção a Beto.


Um misto de alegria, nervosismo, aflição, dúvida... tudo isso misturado. Tuca vestiu-se, deu um jeito no cabelo e em pouco tempo, tornou-se ainda mais bonita do que era. Jeito simples, despojado e charmoso.






- Ei! – sai Clarisse atrás dos dois.


- O que foi, Clarisse?


- Estou de carro e vou dar uma carona para vocês. Vamos chegar juntos no velório. A roupa ficou imensa em você, Tuca. Imagina que essa era a menor. Já não a uso faz um tempão.


- Não tem problema, acho mesmo que vou ficar do lado de fora.

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